Dr. Érico
Tadeu Xavier
A Torá é
o nome judaico pelos primeiros cinco livros da Bíblia. Torá vem do verbo iarah
cujos sentidos básicos são lançar (Js 18:6; Ex 15:5) e atirar (Ex
19:13; I Sm 20:36). Mas no seu uso causativo (1) o verbo significa apontar com o dedo
ou gesticular com a mão, como faz quem ensina os outros, e assim chega
significar ensinar (Gn 46:28; Ex 35:34; Pv 4:4; I Sm 12:23; Dt 33:10;
17:10,11), desta maneira, a palavra significa “mostrar o caminho”, ou “ensinar”.
Torá é, então,
instrução, e no contexto de instrução baseada na revelação de Deus é instrução
normativa ou direção normativa. Pode levar o sentido de lei, mas a lei no
sentido amplo, toda a instrução da palavra de Deus e não apenas aos Dez
Mandamentos.
Um dos aspectos
principais da teologia da Torá está voltada a Deus e sua relação com o mundo.
Deus é apresentado na Torá como:
- O Deus Vivo
Moisés
perguntou: ”(...) quem há de toda carne, que tenha ouvido a voz do Deus vivente a falar do meio do fogo,
como nós a ouvimos (...)?” (Dt 5:26).
Este conceito do Deus vivo recebeu
relevo especial num meio ambiente caracterizado pela abundância de deuses
representado por imagens esculpidas. Iavé foi considerado vivo por causa de
seus feitos na vida de Israel. Dentro do contexto de Iavé planejar em fazer Israel
atravessar o Jordão a pé enxuto, Josué afirmou o seguinte ao povo: “(...) Nisto
conhecereis que o Deus vivo está no meio de vós, e que certamente expulsará de
diante de vós os cananeus...” (Js 3:9,10). Teria sido quase impossível não
conceptualizar Iavé como após as intervenções dele no Egito por meio das dez
pragas. Os egípcios conceberam os seus deuses como vivos, pois adoravam o sol,
os animais, o rio Nilo e o próprio Faraó, mas chegaram a entender que Iavé era
vivo numa dimensão muito superior.
Moisés
salientou, entretanto, que o Deus vivo é invisível aos olhos de Seu povo, mesmo
quando fez a sua aliança com ele: “(...) porque não vistes forma alguma no dia
em que o Senhor vosso Deus, em Horebe, falou conosco do meio do fogo; para que
não vos corrompais, fazendo para vós alguma imagem esculpida, na forma de
qualquer figura (...)” (Dt 2:15,16). De outro lado, ele se manifestava provisoriamente
aos olhos humanos sob a forma de homem, anjo, sarça ardente, fogo, escuridão e
nuvem (Gn 18:2, 10:22; 19:1; Ex 3:2; 13:21; 34:5). Todos estes trechos implicitamente
formam a base embrionária de revelação posterior de que Deus é espírito (Is
31:3; João 4:24).
- O Deus que age
Ele se
mostra vivo tanto na experiência individual dos homens de fé como Moisés como
nos formativos eventos históricos do povo. Por esta razão, a Torá, em conjunto
com o Antigo Testamento todo, focaliza os atos, ou feitos de Iavé, dando
proeminência àquele do livramento de escravidão egípcia (Ex 3:8; 15:1-13; Sl
103:7; Sl 106:10; Ex 12:12; 32:4; Dt 5:26; 7:8; I Rs 18:22-24). Ele é o Senhor
da história humana, o Deus que age tanto por atos? salvação como por atos de
juízo para outros, em dependência da relação com ele ser reta ou deturpada.
- O Deus que
Cria
A Torá
apresenta Deus pela primeira vez por afirmar, “No principio criou Deus os céus
e a terra”, isto é, criou o universo no seu aspecto material (Gn 1.1). Logo
indica que Ele criou também a vida animal (gn 1:21). Chega ao seu enfoque por
definir que ele “(...) criou à sua imagem: (...) macho e fêmea os criou” (Gn
1:27). Por abençoá-los dizendo: “Frutificai-vos e multiplicai-vos”. Deus
implicou na participação contínua dele na criação da espécie.
A
primeira unidade no relato da criação (1:1-4ª) indica o Criador pelo nome
genérico, Deus, Elohim. Mas a segunda unidade
(2,4b-3:24) faz uma identificação mais específica, em face de trechos de
época do próprio Moisés como Ex 6:3-7, onde Deus se identificou a Moisés pelo
nome Iavé, afirmando, “(...) eu sou Iavé;(...) Eu vos tornei por meu povo e
serei vosso Deus”. Pelo nome composto Iavé Deus, introduzido pela primeira vez
em Gn 2:4b e usado na maior parte das vezes até o fim da unidade, o autor
identifica o criador como sendo Deus de Israel. De fato, é bem provável que o
sentido do nome Iavé seja “Ele Que Cria”. Desta maneira, o Deus da Criação é
bem identificado e não é um deus qualquer.
A Torá
ensina que a raça humana, as fêmeas tanto quanto os machos, têm sua origem no
ato criador de Deus (Gn 1:17). A respeito do papel que as causas secundárias
podem ter tido no início como reconhecidamente têm na criação contínua da raça:
os pais geram os filhos por razão da bênção eficaz do Criador. Neste retrato
interpretativo da criação, Deus é quem tem o papel essencial e predominante.
O homem
não é, portanto, um mero acidente cósmico, um triste enigma, um ser de
dimensões unicamente materialista, animalesca ou instintiva, e sim de grande
dignidade por ser, unicamente entre todas criaturas, semelhantes a Deus. Embora
um segundo retrato apresente o homem como um ser fraco por pertencer ao pó da
terra (Gn 2:7), ele, por ser semelhante a Deus (1:27), é valorizado por Deus,
mesmo em face de seu pecado contra seu Criador, no sentido de ser o objeto do
próprio redentor de Deus (Gn 3:15). A chamada de Israel para ser “um reino
sacerdotal” em meio aos povos (Ex 19:6) encontra sua relevância somente diante
deste fundo da criação do homem.
A
Torá fala em colocação genérica do homem
ser criado à imagem de Deus (1:27; Gn 5:1,2). É genérica porque afirma, “(...)
macho e fêmea os criou”. O grande erro é que vezes demais a questão é debatida
em torno da imagem ser algo dentro do homem. Isto fere a linguagem de texto,
pois ela fala que “Deus criou o homem à sua imagem”, não que criou nele uma
imagem de si mesmo. É o homem que é a imagem de Deus no mundo. Parece que o
termo moderno personalidade seja indicada. O homem é uma personalidade
semelhante à personalidade de Deus. É exatamente isto que Hebreus fala em
relação ao Filho: “Sendo ele o resplendor da sua glória e a expressa imagem do
seu Ser” (2:3).
Não é o
Filho igual ao Pai em seu aspecto físico (2).. Mas em sua personalidade, que neste caso inclui seu
caráter, ele é a expressão fiel e material do ser espiritual de Deus (Gn 1:26;
5:1). O contexto mostra-o como capaz de comungar com Deus, aceitar
responsabilidade pelo resto da criação e fazer opções quanto ao bem e o mal.
Deus é perfeição absoluta, enquanto o homem é perfeição em potencial.
- O Deus único
Por
revelar-se como vivo, atuante, criador e Senhor da história, Iavé se mostrou
como incomparável em relação a todos os outros deuses do mundo antigo. O Baal
de Canaã, por exemplo, era muitos, pois em cada localidade ele foi conhecido
por nome regional e em termos de uma imagem específica localizada lá. Iavé, por
outro lado, exercia sua autoridade em todas as regiões e isto invisivelmente
sem imagens representativas, a assim se revelou de ser único de sua categoria.
Por demonstrar sua autoridade sobre os deuses falsos, as forças da natureza, os
poderosos reis e os eventos históricos, Iavé foi concebido como incomparável em
todas as terras e circunstâncias experimentais pelos heróis da fé. Foi só mais
um passo para concluir que, ao contrario dos deuses egípcios e cananeus, ele
foi um só e único em relação às outras divindades. Assim, Moisés o definiu da
seguinte maneira: “Iavé é o nosso Deus: Iavé é um” (Dt 6:4)(3).
“Deus é
um, “é expressão constantemente repetida no Antigo Testamento. Havia amplas
razões para essa insistência, pois o povo escolhido vivia no meio de nações idólatras
e politeístas. É este o motivo porque o Antigo Testamento enfatiza tanto a
unidade de Deus. (Ver: Dt 4:35: 2 Rs 19:15; Is 44:6 e Zc 14:9). Por razão de
tanta idolatria e em face da experiência salvadora consistente do povo pela mão
de Iavé, havia urgência em ensinar que Deus é um.
O tempo
das distinções pessoais dentro de seu único ser chegaria posteriormente num
tempo propício à necessidade de tal revelação.
- O Deus ético
Abrão
reconheceu o seu Deus, Iavé, no “Deus Altíssimo, o Criador dos céus e da terra”
(Gn 14:19), de Melquisedeque, rei de Salém (14:22). Deus tinha chamado Abrão
desde Ur dos Caldeus (11:31; 12:1) e tinha feito uma aliança com ele e a sua
descendência (15:18; 17:7-10), mudando-lhe o nome para Abraão (17:4-5). Foi
este Abraão que, ao saber de iminente destruição divina sobre as pecaminosas
cidades se Sodoma e Gomorra, fez intercessão a Deus em prol dos “justos” delas
(18:20-23). Ele apelou para justiça de Deus ao dizer, “Longe de ti que faças tal
coisa, que mates o justo com o ímpio, de modo que seja o justo como o ímpio
(...) Não fará justiça o Juiz de toda terra?” (18:22). Sem dúvida, Abraão
revela assim o seu conceito do caráter ético de Deus.
Israel
recebeu a aliança de Deus, as diretrizes da qual são resumidas nos Dez
Mandamentos, que são exigências éticas de um Deus ético (Ex 20; Dt 5). Algum
tempo depois, Moisés recebeu uma revelação ainda mais profunda do sentido ético
do nome de Deus: “iavé, Iavé, Deus misericordioso e compassivo tardio em
irar-se e grande em beneficência e
verdade; que usa de beneficência com milhares; que perdoa iniqüidade,
transgressão e pecado; que maneira alguma terá por inocente o culpado; que
visita a iniqüidade dos pais sobre os filhos... “(Ex 34:6-7). Perto do fim de
sua carreira Moisés celebrou Iavé, o Deus de Israel, como sendo de caráter
ético: “... proclamarei o nome de Iavé; engrandecei o nosso Deus. Ele é a
rocha; suas obras são perfeitas, porque todos os seus caminhos são justos; Deus
é fiel e sem iniqüidade; justo e reto é Ele” (Dt 32:3-4).
Este
aspecto do caráter do Deus da Bíblia é distinto em comparação com todos os
outros deuses. Entre todos os deuses que o mundo tem conhecido, unicamente Iavé
é de caráter ético: Ele é justo (Dt 32:3,4; Is 45:21-23).
Este
aspecto de Deus é também o fundamento do plano da salvação pelo qual Deus,
sendo justo, justifica o pecador arrependido pela fé no salvador.
- O Deus Rei
Embora
não seja indicado na Torá quando o conceito de rei e reino surgiram na história
é claro que desde Abraão o povo da Torá tinha conhecimento de tal realidade (Gn
14). Tem sido provado que a forma estilística e a linguagem empregadas na
narrativa sobre a instituição da aliança com Israel (Ex 30-24), tem seu pano de
fundo nos tratados entre o grande rei e o rei vassalo. O conceito do reino de
Deus entre os israelitas teve sua origem em conjunto com a aliança feita com Israel no
Monte Sinai. A aliança significava a aceitação por Israel da soberania de Iavé,
e foi justamente aqui que começou a noção do domínio de Deus sobre seu povo, o
Reino de Deus, tão central ao pensamento de ambos os Testamentos. Êxodo 24:9-13
retrata a manifestação da corte celestial do Rei Iavé.
Sendo o
Criador e o Remidor de Israel, Iavé tinha todo o direito a si mostrar como seu
rei (Ex 20:1-2).
Uma vez
levando em conta estes fatos, estamos em condições para perceber que certos
outros trechos da Torá impliquem na cena da corte celestial Rei Iavé (Gn 1:26;
11:5; 18:21; 28:12-13; Ex 3:8; 19:6). Estas colocações certamente combinam com
as visões de Iavé como rei proveniente da época de Moisés. Condizente com isto,
Iavé, ao estabelecer Israel como seu reino salvífico na terra, instituiu uma
nova relação com o povo, aquela aliança.
Ao
escolher os patriarcas e seus descendentes, Iavé visava estabelecer o seu
domínio salvífico sobre eles e através deles sobre os povos da terra (Gn 12:3;
Ex 19:6; Dt 7:6). As palavras de Deus a Abraão servem para resumir o propósito benefício
e salvífico do Rei Iavé com este povo em prol de todos os povos: “Eu farei de
ti uma grande nação; abençoar-te-ei, e engrandecerei o teu nome; e tu, sê uma
bênção (...)e, em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:2-3).
Portanto,
o Deus da Torá não é um deus qualquer ou um deus semelhante aos deuses dos povos
vizinhos de Israel, como o sol, os animais, o rio Nilo e o próprio Faraó. O
Deus da Torá é de uma dimensão muito superior. Ele é o Deus vivo que age na
vida e na história da humanidade, tanto para salvar como para julgar. O Deus da
Torá é o Deus que cria o mundo e a humanidade. Ele é o único Deus verdadeiro e
todo poderoso. Não há nada semelhante a Ele. Ele é ético pois é justo e reto e
com tal justiça e retidão julgará os homens. O Deus da Torá é Rei. Ele reina
através do Seu povo para salvar um povo dentre os povos da terra.
(1) O
verbo hebraico bíblico tem vários graus ou aspectos pelos quais ele qualifica a
ação que indica, que seja simples, intensa, causativa ou reflexiva.
(2) Deus
é espírito (ver: Jô 4:24 ). Jesus, o Deus encarnado, se faz carne=egéneto (Jô
1:14 ), Ele não era carne. O Senhor assumiu a forma = corpo humano ou seja a
aparência física do homem. Ele refletiu a imagem do Pai ou seja o caráter, a
glória, a santidade, as virtudes e os atributos do Pai e não a forma física.
(3) Em Dt
6:4 a palavra hebraica traduzida “único” (o único Senhor) é echad que significa
uma unidade composta (ver: Gn 11:6 e 2:24 ). Em hebraico, existe outra palavra
para “unidade única”. É a palavra yachid (ver: Gn 22:2 ).
Dr. Erico Tadeu
Xavier é professor no SALT/IAENE